Lie estava imóvel, deitada de costas sobre uma das camas do quarto 147 ; tinha a cabeça caída para o lado, enquanto seus olhos enevoados vagavam distantes pelas paredes sombrias.
O que poderia fazer? O que qualquer um poderia fazer?
Tudo a seu redor estava imóvel, como se enforcado por seu próprio silencio e desabitação. O único movimento talvez fossem as cortinas, que bailavam romanticamente ao sabor da brisa outoniça, mas em outro lugar, bem longe dali, a situação era bem diferente.
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Lie fechou os olhos por um instante, e imagem da senhorita Vam Roas perfeitinha entrando a naquele mesmo segundo no quarto acabara de passar em frente a seus olhos quase que como uma lembrança.
Fazendo com que novamente Lie voltasse para a noite em que Roger invadiu sua vida, sua família, seus segredos; da noite em tudo acabou. Lembrou-se até do que se seguiu adiante, no hospital:
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- O seu tio Roger não está meu anjo.
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- Não! Você ainda não entendeu o que eu disse: quero ver minha tia, minha TIA MAY.
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Lie estava na recepção do hospital, ainda usando um daqueles aventais ridículos. Havia acordado aquela manhã sem entender o que estava acontecendo; já se faziam quatro semanas que ela estava internada, e deveria receber alta naquele dia e voltar para casa, mas seus “responsáveis” não estavam lá.
Então ela respirou fundo e disse:
- Será que eu poderia pelo menos usar seu telefone por favor?
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A recepcionista era uma mulher gorda e velha, irritantemente alegre e sorridente, parecia ter sofrido algum tipo de lavagem cerebral ou coisa do tipo; a mulher era quase tão esperta quanto um garfo.
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Lie estava nervosa, queria não estar entendendo a situação. Começou a discar o numero de celular de sua tia, mas antes que pudesse completar a ligação, alguém subitamente aperta o botão do gancho cortando a ligação. Furiosa lie se vira para encarar o imbecil da vez; era Dr. Aulfer, seu medico, ou melhor, medico de Roger.
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- Nã nã nã mocinha, seu tio Roger já me passou todas as instruções sobre a senhorita – Disse estendendo o dedo grosseiro para a garota com reprovação – Você vai direto daqui para sua nova escola, seu tio já cuidou de tudo.
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E agarrou a menina pelo pulso arrastando-a pelo corredor do hospital.
A essa hora já tinha concluído que Roger havia seqüestrado sua tia para os Estados Unidos, para poderem fazer a cerimônia, mas principalmente para ele poder desviar todo nosso dinheiro para sua conta. “Maldita comunhão de bens!” pensou.
Apesar de tudo Lie estava impressionada com a influencia que Roger possuía naquele lugar, aliais, começou a se recordar de varias ocasiões que a levaram a desconfiar que ele não era exatamente o arquiteto simplório que pensavam.
Lie balançou a cabeça, tinha que se concentrar no agora.
- O que?? Mas eu nem estou com as minhas coisas! – protestou.
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- Já disse para não se preocupar, eles já estão com tudo que você vai precisar... Ah sim! – e parou subitamente e começou a mexer nos bolsos, até tirar uma pequena e simples caixinha de metal decorada – Esses são os remédios que você terá que tomar, eles farão com que você se sinta bem melhor quando, hã... Você sabe... “Acontecer”.
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Era a caixinha onde que tia May costumava guardar seus remédios antidepressivos, lie conhecia bem ela; era realmente pequena, de modo que se escondia até em sua pequenina mão, e decorada com um pouco de louça pintada, realmente linda.
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Aquela foi a primeira e a última vez que tomou aqueles remédios, eles a deixavam quase que inconsciente, sem a capacidade de raciocinar por si só, a transformavam em um fantoche; tinha prometido para si mesma que nunca mais tomaria uma daquelas coisas novamente, mas agora a situação tinha mudado, ela havia perdido totalmente o controle. Sua expressão morta mascarava um medo imenso; nunca havia perdido o controle daquela maneira, estava completamente vulnerável e indefesa. Ela precisava fazer alguma coisa, não podia ficar assim por mais tempo.
Em sua mente, Coyote devorava-a; cada beijo, cada caricia, era como se arrancasse um pedaço dela. Seus lábios pareciam ter sede por sua consciência, beijando-a ferozmente até a ultima gota de alto controle.
Lembrou-se então: Os remédios estavam na mala. Inalcançáveis. A ultima chance de se libertar daquela armadilha despedaçou-se.
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( ( (Ou talvez não a última.) ) )
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Lie olhava secamente para uma pequena tesoura de unha sobre o criado mudo do lado da cama. Seus olhos passavam incógnitos, indo e voltando sobre aquela pequena lamina; deslizando sobre seu fio afiado, que sorria sadicamente enquanto brilhava sob o resíduo de luz que escapava pelas densas cortinas. Uma nova idéia lentamente pousa em sua mente, como um grande corvo acocorando-se fogosamente sobre um galho qualquer do lado de fora da janela.
Lentamente, lie vai aproximando seu braço do criado mudo, não tinha mais nada a perder; ela já havia feito isso antes, varias vezes, quando queria ficar sozinha, completamente sozinha. Finalmente ela tem em sua mão o precioso objeto, sua chave; e com um movimento rápido e certeiro, a pequena lamina abriu caminho pela carne quente e pulsante; o sangue manchava os lençóis, consumindo cada vez mais o branco por um novo vermelho, da mesma forma como tudo a sua volta.
Lie havia enfiado toda a lamina da tesoura no ombro direito, e com um puxão, arrancou-a abrindo ainda mais o buraco, por onde saia muito sangue. Ela precisava se concentrar na dor, deixar-se dominar, só assim se livraria de Coyote.
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Finalmente, o tão desejado silencio. Lie suspirou aliviada enquanto saboreava sua dor libertadora. Sentou-se na beira da cama e começou calmamente a planejar a sua explicação para a bagunça, até que avistou seu laptop jogado no chão do corredor; a porta estava entre aberta e Lie podia ver suas coisas espalhadas pelo chão. Levantou-se e apanhou o aparelho, trazendo-o para dentro e ignorando as outras coisas; abriu-o e começou a digitar.
Achou que era um boa hora para se confessar.
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Deis de sempre, aqueles demônios estiveram com ela, dês de que se conheceram; mas ela era uma garotinha normal, e como toda garotinha normal precisava ficar sozinha, mas algumas vezes, Lie gostaria de ficar sozinha para sempre. Pois eles nunca a deixavam. Sempre, quanto mais ela fugia, mais eles se tornavam presentes. Um dia, quando voltou da escola, depois de uma briga terrível que tivera com uma amiga, Lie foi para o banheiro e começou a chorar. Não havia ninguém em casa, mas logo sua tia chegaria para elas saírem para jantar juntas, como faziam todas as sextas.
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- Me deixem sozinha!! Eu quero ficar sozinha!! -Gritava.
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Mas estavam todos lá, falando e falando dentro de sua cabeça, falando o quanto àquela garota não merecia a
amizade dela, o quanto ela tinha razão, o quanto ela era melhor; e Lie não aguentava mais, sentia como se fosse explodir! Então, olhou para o espelho, dentro dos proprios olhos; estava com tanto ódio de sua vida e de si mesma que começou a gritar e socar o espelho desesperadamente. Depois da explosão, o silencio. Lie ficou, durante algum tempo, contemplando o sangue que escorria-lhe pelos dedos jovens, enquanto lágrimas vazavam-lhe dos olhos, misturando-se a pequena poça vermelha-escura que se formava no chão do banheiro.
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Depois , Lie tirou a roupa e entrou debaixo do chuveiro sem nenhuma palavra, tinha que se arrumar para o jantar. Uma estranha paz tomou seu corpo, e foi como se nada tivesse acontecido, e assim foi como descobriu.
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Mas daquela vez seria diferente, alguma coisa não havia dado certo, estava sangrando demais ; De repente tudo começou a girar, e um barulho ensurdecedor invade seus ouvidos; Lie só podia observar apavorada, formas distorcidas do que era o quarto, borrões de realidade; e um mar de vozes gritavam desesperadamente em sua cabeça. Ela acabou atingindo uma artéria sem querer, e agora estava perdendo muito sange; olhou para o chão e viu a enorme poça que se formava.
Aos poucos tudo foi escurecendo, até
apagar.